segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Crise de confiança

Um incidente, talvez secundário, na terrível tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, é o fato de que os seguranças teriam dificultado a saída de pessoas, com receio de que deixassem de pagar a conta de consumação.
Isso nos revela um problema crônico de desconfiança arraigado em nossa sociedade. Lembro-me de quando ainda era criança, alguém contou que, em determinado País, havia lojas sem vendedor, de modo que os produtos ficavam expostos e o comprador deixava o dinheiro e retirava o que desejava. E a mesma pessoa que fazia o relato, concluía: “se fizessem isso aqui no Brasil...”.
E outros exemplos como esse poderiam se facilmente encontrados, que revelam uma baixa autoestima quanto aos atributos morais do brasileiro. Talvez o mesmo fundamento que teria levado os seguranças da boate a supor que alguém pudesse se aproveitar do incêndio para sair sem pagar a conta, é o que leva, por exemplo, as companhias de seguro a exigir infindáveis documentos antes de pagar a indenização, no pressuposto de que o segurado está de má-fé até que prove o contrário, ou mesmo a exigência burocrática de provarmos a todo tempo que estamos dizendo a verdade, que somos honestos etc.
Certa vez fui abordado por um policial rodoviário que, como de costume, solicitou os documentos. Enquanto procurava a carteira, a minha filha, então com cinco anos, perguntou: “Pai, por que ele quer ver os documentos?”. “Para verificar se está tudo em ordem”, respondi sem desviar a atenção do que estava fazendo. “E está em ordem?”, insistiu ela. “Sim, está”, disse eu. “Pois então diga ao guarda que está tudo certo e vamos embora...”, concluiu ela em toda a sua ingenuidade.
Como seria bom viver numa sociedade em que a simples palavra merecesse confiança! E como é fundamental a sinceridade nas relações humanas! Nossa vida seria insuportável se tivéssemos de desconfiar de tudo e de todos. Por exemplo, se observamos as sinalizações de trânsito, é legítimo supor que de fato nos conduzem ao destino esperado. Se buscamos uma informação na rua, supomos que a pessoa nos diz a verdade. Se nos unimos em matrimônio a outra pessoa com a promessa de que o fazemos por toda a vida é, também, de se esperar que se colocará todos os meios para honrar esse compromisso.
Assim, se a confiança é fundamental nas relações humanas, é necessário criar toda uma cultura que a favoreça. E os pais devem começar desde cedo. Para isso, é necessário que sejam radicalmente sinceros com os filhos, não mentido jamais para eles. É claro que nem tudo pode ou deve ser dito, mas silenciar é muito diferente de mentir. E, depois, devem também fomentar a confiança neles. Os pais devem procurar acreditar sempre nos filhos. É claro que não se há de ser ingênuo, porém, é muito melhor que sejamos enganados uma vez ou outro do que por uma vez sequer e mesmo que em assunto de pequena importância, demonstremos injustamente desconfiança.
Talvez um segundo passo seria se criar uma cultura da confiança nas instituições públicas e privadas. Com a devida prudência, pensar que as pessoas nos dizem a verdade até que haja um motivo razoável para pensar o contrário pouparia inúmeros aborrecimentos e tornaria a vida mais fácil a todos.
É claro que seria necessário um contraponto. Assim, penso que a punição dos desonestos e daqueles que comprovadamente faltam com a verdade por palavras ou ações deveria ocorrer com muito maior rigor. Com efeito, se a sinceridade é essencial para o convívio social, a mentira, a dissimulação, a fraude e o estelionato deveriam ser punidos com maior rigor, pois se tratam de um câncer que corrói as bases de uma convivência saudável.

"Não tenhas medo da verdade, ainda que a verdade te acarrete a morte", costumava dizer um grande homem. Mais ainda, dizia também ele que preferia acreditar no que lhe dizia um filho seu mesmo que cem notários juntos dissessem o contrário. É claro que a frase precisa ser bem entendida e não pode se transformar num estímulo à imprudência.  Mas a nossa sociedade reclama por sinceridade e confiança. E isso não apenas para não se pensar que as pessoas possam se aproveitar de um incêndio para não pagar uma conta, mas também para que a atual e as futuras gerações possar ver e crer que quando inserimos em nossa Constituição a supremacia do direito à vida estámos a dizer a verdade.

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