Na última terça-feira, dia 30 de junho, o Correio
Popular trouxe a notícia da agressão que um estudante de medicina teria
cometido contra um mendigo, ao que parece, porque “não gostou da maneira como a
vítima olhou para ele”. Devo ressaltar que não pretendemos julgar
precipitadamente esse jovem, nem atribuir-lhe a autoria desse delito, pois ainda
não houve qualquer pronunciamento da Justiça. Além disso, esse incidente, considerando
a hipótese de que tenha ocorrido, pode ter sido um evento isolado na vida desse
rapaz. E mesmo que tenha agido mal, há de se resguardar sempre a honra de quem
o praticou. É que podemos condenar o erro, não a pessoa que o comete.
Feita essa ressalva, a justificativa que esse jovem teria
dado à polícia é intrigante e merece ser meditada. Consta que teria dito que o
mendigo “não acrescentaria nada à sociedade, no futuro”. Será que a vida de um
homem vale apenas pela utilidade que dela possa se extrair em benefício da
sociedade?
Penso que essa visão é extremamente cruel e desumana.
Se o ser humano vale pelo que de útil possa fazer, talvez a primeira
conseqüência seria eliminar os idosos que já não se prestam para o trabalho.
Com efeito, o que acrescentariam eles à sociedade? O mesmo se diga do portador
de deficiências físicas ou mentais, que demandam atenção constante de outras
pessoas. Seria o caso de eliminá-los? E os embriões com más-formações? Esses
então haveriam de ser prontamente descartados?
Essa concepção utilitarista da vida humana, em última
análise, desumaniza o próprio homem, que deixa de ser valorizado pelo que é,
mas apenas pelo que produz. E se essa forma de encarar a vida dos demais é ruim
nas pessoas em geral, tanto mais o é num médico. É que esse tem por vocação a
defesa da vida. Mas há de lutar pela vida como um bem em si, e não apenas pela
“vida útil” ou pela vida dos “economicamente ativos”, pela vida dos “embriões
viáveis” ou outras expressões reducionistas como essas.
Há uma cena interessante no filme Patch Adams. O
professor está no hospital em companhia dos estudantes de medicina diante de um
paciente. E os alunos vão fazendo perguntas técnicas, até o momento em que o
Patch (Robin Williams) faz uma
pergunta extremamente simples, mas que desconserta o mestre: “qual é o nome do
paciente?”. Para respondê-la, o professor tem de ler na ficha clínica. Com esse
gesto, e com muitos outros, deixa-se claro que o que vale a pena é se doar pelo
outro, em especial, os doentes, buscando aliviar-lhes as dores e sofrimentos. E
mais, essa postura dá um sentido para a própria vida, trazendo consigo uma
forte e inabalável alegria.
Poucos dias após o incidente relatado com o mendigo,
presenciei uma cena que me soou como desagravo. Estava numa igreja momentos
antes da Missa e eis que lá se adentrou um homem, exalando cheiro de álcool já
antes das sete horas da manhã! Após pedir dinheiro para duas ou três pessoas
que não lhe deram atenção, parou diante de um senhor que estava ao meu lado. E
começou a mesma conversa mole de que precisava de dinheiro para o seu café da
manhã, que há muitas horas não comia nada etc. Enquanto falava, ia puxando a
blusa de modo a instigar compaixão por suas imensas feridas. Esse senhor o
ouviu pacientemente. Sem se impressionar com as repugnantes chagas, mas sem
deixar de olhar no olho e com atenção ao seu interlocutor, foi ouvindo todos os
seus argumentos para lhe pedir dinheiro. Quando o pedinte acabou de falar,
disse a ele com um tom afetuoso: “eu vou pagar o seu café da manhã. Espere
apenas a Missa terminar”. O mendigo ficou muito satisfeito, mais pela atenção
que lhe deu que pela promessa da refeição e, ainda cambaleando de bêbado, disse:
“o senhor é um anjo do céu”.
Esse senhor, como que querendo dar um sentido para o
meu ar de espanto, disse-me: “Diante d’Ele”, e apontou para o sacrário, “esse
homem tem o mesmo valor que você, que eu e que qualquer outro ser humano que
existe. Tem a imensa dignidade de um filho de Deus”.
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