Na última quinta-feira pudemos observar em quase
todas as cidades do País as procissões em comemoração da festa do Corpus Christi. Apesar de ser um costume
milenar, hoje não faltam vozes que, a pretexto de fomentar a construção de um
Estado laico, criticam tais manifestações da religiosidade popular. Com efeito,
não são poucos os que desejam que a fé fique confinada aos locais específicos
de culto ou, menos ainda, que esteja limitada a atos estritamente privados. Mas
será que a demonstração pública da fé é mesmo incompatível com o princípio da
liberdade religiosa?
Em quase todas as sociedades, mesmo nas mais
primitivas, sempre foi algo natural a existência de crenças que levaram seus
membros a prestarem culto à divindade. Isso constitui um sinal claro de que
religiosidade é inerente à natureza humana. Assim, coibir o homem e a mulher de
manifestar publicamente a sua fé é atentar contra a sua própria natureza, o que
equivale a afrontá-lo em sua dignidade.
O ateísmo, como tal entendido a negativa pura e
simples da existência de Deus, é relativamente recente na história da
humanidade. Com o devido respeito aos que pensam diferente, acredito que o racionalismo
ateu é, acima de tudo irracional. Com efeito, negar a existência de algo
simplesmente porque não se pode compreendê-lo ou prová-lo constitui uma
exagerada manifestação de soberba. Seria o mesmo que dizer que o mundo não
existe para um recém-nascido ou para um alienado mental simplesmente porque não
podem compreendê-lo!
Apesar disso – e temos aqui uma grande conquista dos
tempos modernos – os adeptos das mais diversas crenças, e também os que se
valem do direito de não se filiar a nenhuma delas, hão de ter um profundo
respeito pela liberdade das consciências. Nesse sentido, as manifestações
públicas da fé são legítimas e decorrem de um anseio natural do ser humano.
Porém, isso não pode significar, ainda que indiretamente, num propósito de
menosprezar as convicções dos demais, que não professam a mesma fé, ou não
possuem convicção religiosa alguma.
Bem a propósito, nesse sentido, são as palavras
pronunciadas pelo arcebispo metropolitano de Campinas, d. Bruno Gamberini por
ocasião da celebração do Corpus Christi:
“É preciso lembrar que ser bom é amar o próximo”.
Mas não é propriamente nos atos de manifestação
pública da fé que ocorre a discriminação religiosa em nosso tempo. Talvez a
forma mais cruel desse tipo de preconceito se dá ao pretendem que as pessoas
dissociem por completo suas convicções da sua atuação na vida pública e privada.
Ora, todo ser humano é único e não pode ser compelido a levar uma espécie de
vida dupla, ou seja, uma para ser vivida no templo religioso e outra como
cidadão, trabalhador ou pai de família. Nesse sentido, é natural que cada pessoa
aja de maneira coerente com a fé que professa, ainda que isso não possa,
evidentemente, ser invocado como desculpa para não cumprir as leis
legitimamente promulgadas.
Há quem sustente, por exemplo, que um parlamentar que
vier a ser chamado a se manifestar sobre o aborto, deve abstrair por completo a
sua condição de cristão. E o mesmo se diz de um juiz que tiver de analisar uma
questão de eutanásia ou outra questão qualquer. Nessas situações não seria
correto mesmo que o parlamentar ou o magistrado justificassem suas posições
exclusivamente em textos bíblicos ou extraídos do magistério da Igreja. No
entanto, é absolutamente legítimo que, inspirados por eles, busquem soluções
que estejam de acordo com suas convicções. Além disso, para nós, brasileiros,
essas convicções, no mais das vezes, estarão de acordo com os princípios
consagrados na própria Constituição Federal.
Por fim, penso que na vida pública (e também na
privada), as convicções religiosas não devem nortear uma luta por convencer os
demais, numa espécie de proselitismo oportunista. Porém, motivado por essas
mesmas convicções podem lutar para que se respeitem os direitos que os homens
possuem como decorrência de sua condição de filhos de Deus. E isso é universal
e transcende a qualquer partidarismo religioso.
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