segunda-feira, 30 de junho de 2008

Autoridade Legítima

O Conselho Nacional de Justiça lançou recentemente o sistema Justiça Aberta, que pretende disponibilizar à população informações sobre a produtividade dos juízes e dos Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil. Penso que a decisão nos remete para uma indagação: o que legitima o exercício da autoridade?
A resposta a isso não pode se limitar ao aspecto formal. Ou seja, que o magistrado tem autoridade para julgar porque foi aprovado num concurso público, que o parlamentar tem autoridade para legislar e o governante para governar porque foram eleitos pelo povo para essas finalidades. De fato, para que seja investido num cargo público é necessário que essa investidura se dê conforme as regras estabelecidas. No entanto, é igualmente necessário que a autoridade seja legítima também e principalmente em seu exercício. E o que legitima a autoridade em sua atuação?
Penso que a autoridade somente se legitima em seu exercício se de fato está voltada para o bem daqueles que lhe estão sujeitos. E isso há de se verificar em aspectos bem concretos e ser objeto de constante reflexão. Nessa linha, cabe ao juiz analisar acerca de como tem exercido o seu ofício: como tem sido o  atendimento às partes e aos advogados? Com que profundidade e atenção analisa os casos que lhes são submetidos? Permite-se, com freqüência, que o excesso de casos para serem apreciados sejam desculpas para uma análise superficial, ou para um atendimento pouco cortês?
E o mesmo se diga de toda espécie de autoridade. Quanto ao vereador e ao deputado, o que se busca na elaboração de leis? Pretende-se que essas valorizem e promovam a dignidade da pessoa humana? Ou a atuação parlamentar é toda voltada para a “síndrome da reeleição”, pela manutenção do mandato? Ou, pior ainda, para a formação de conchavos que assegurem a manutenção do poder e, com ele, dos privilégios? E outras tantas indagações similares poderiam se feitas pelos governantes.
Quem está investido de autoridade, antes de tudo, tem de dar bom exemplo. Uma das críticas mais severas que já ouvi sobre o mau uso da autoridade está no sentido de que “atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos outros, mas não querem movê-los sequer com o dedo”.
Qualquer pessoa investida de autoridade deve se esforçar para obter prestígio. Isso não significa, no entanto, que devam assumir uma postura demagógica, mostrando-se “bonzinhos” ou, como se diz hoje em dia, atuar pelo “politicamente correto”. Aliás, um atributo imprescindível aos homens públicos é a fortaleza necessária para saber desagradar, saber contrariar interesses ilegítimos de pessoas ou grupos. Mas é necessário o prestígio que nasce de uma atuação coerente com os valores que defende. O prestígio se forja na luta constante por ser cada vez melhor como pessoa, no esforço por ser cada vez mais justo, mais prudente, mais forte, mais veraz.
A autoridade não precisa ser um “super-homem”, até porque super-homens não existem. Pode ser pessoa com defeitos. E quem não os tem? Mas o essencial é lute sinceramente contra eles. E é nessa luta que se alcança o prestígio, imprescindível para o legítimo exercício da autoridade.
Não basta que a autoridade esteja investida no cargo de acordo com requisitos formais previstos na lei. Mais que isso, há de buscar a sua legitimação dia após dia, na fidelidade com que é exercida para o bem daqueles que lhes estão sujeitos.

O Conselho Nacional de Justiça lançou um sistema de pretende controlar a produtividade dos juízes. Não tenho conhecimento da existência de uma iniciativa semelhante com relação aos membros do Legislativo ou Executivo. De qualquer sorte, seja como for, penso que todos os integrantes dos Poderes devam instituir, eles próprios, um controle de qualidade muito mais rigoroso e exigente. Aquele que é, ou deveria ser feito, diariamente, no reduto de suas consciências. E que essas estejam bem formadas e atuantes.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Hoje e agora

Outro dia conversava com um amigo que mora em Campinas e trabalha em São Paulo. Sei que a peregrinação dele já dura mais de dez anos, e então brinquei com ele: “com a vinda do trem-bala as coisas vão ficar melhor para você”, ao que ele respondeu empolgadamente: “puxa, você não sabe como sonho dia e noite com isso!”.
Trata-se de uma aspiração legítima, querer que inovações tecnológicas tornem mais fácil o nosso dia-a-dia. Contudo, há muitas pessoas que não vivem, mas estão sempre aguardando situações ideais que, quando surgirem, “então sim, poderão desfrutar da vida”. Soube de uma pessoa que aguardou por anos a sua aposentadoria, de modo a poder desfrutar de mais tempo para ficar em casa. Ocorre que, logo que isso aconteceu, notou uma infiltração enorme no muro do vizinho, que lhe deixava o quintal com um aspecto horrível. E ele que há muito aguardava a aposentadoria, agora aguarda o conserto do muro, para “levar a sonhada vida tranqüila...”
O problema é que essas situações ideais e imaginárias nunca chegam. Com efeito, mal atingimos aquilo que esperamos, surgem novos problemas. Isso sem contar que aquilo com que tanto sonhamos não traz tantas realizações assim. Como disse com muita sabedoria Quincas Borba, no célebre romance de Machado de Assis: “aos vencedores, as batatas”.
Penso que tudo o que temos de verdade é o momento presente, o hoje e o agora. E é nele e somente nele que nos cabe viver e sermos imensamente felizes, apesar dos muitos problemas que possamos ter. Isso não quer dizer que devamos ser irresponsáveis a ponto de não pensar no futuro, de não prever, esperando que tudo caia do céu. No entanto, devemos nos ocupar do futuro apenas com relação ao que nos cabe fazer hoje por ele. Por exemplo, há pessoas que perdem noites de sono pensando como irão pagar a faculdade do filho que ainda não nasceu. Ora, quanto à faculdade do filho, se há uma reserva de um pouco de dinheiro para fazer agora pensando nisso, que se faça, se não tiver, que se aguarde o momento em que se poderá fazer, e depois, sigamos adiante, com a tranqüilidade e a serenidade de quem vive a vida a cada minuto.
Por vezes nos sentimos esmagados, não com o peso dos problemas que temos, mas com o daqueles que imaginamos que no futuro teremos, ou, pior ainda, ficamos remoendo do passado. Ora, o passado é para ser enterrado e dele extrairmos apenas a experiência para sermos cada vez melhores, para cada vez errarmos menos. E o futuro somente nos cabe ser considerado para aquilo que objetivamente se pode fazer hoje para que ele seja melhor.
Soube de um pequeno diálogo que se deu entre um policial rodoviário e um caminhoneiro. Perguntou o guarda: “quantas toneladas o seu caminhão comporta?”, ao que o caminhoneiro respondeu: “mais ou menos umas cem mil”. O guarda olhou desconfiado e foi ver as especificações do veículo, quando constatou que o pequeno caminhão comportava apenas quatro toneladas, e então ponderou: “Mas no documento consta apenas quatro”. “Bom, isso de cada vez”, disse o caminhoneiro sorrindo, “mas eu não levo tudo de uma vez. Carrego aqui e ali adiante descarrego, volto a carregar e assim vou levando. No final desses anos todos, se cuidar bem direitinho do meu caminhãozinho, acho que bem umas cem mil toneladas ele vai levar”.

Parece ingênua a conclusão do caminhoneiro, mas é sábia. É o que ocorre conosco. Não temos força para levar nas costas ao mesmo tempo todo o peso do passado que já vivemos e do futuro que imaginamos. Morreríamos esmagados e não sairíamos do lugar. Porém, para o peso de hoje temos força para carregar. E, se pensarmos bem, nunca é mais pesado que as costas. E quanto bem não teremos feito aos demais ao cabo de uma vida, um pouquinho de cada vez...

segunda-feira, 9 de junho de 2008

O STF e os embriões congelados

Há poucos dias o Supremo Tribunal Federal decidiu em definitivo a Ação Direta de Inconstitucionalidade referente às células-tronco embrionárias, reconhecendo a constitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, a chamada Lei da Biossegurança. E agora que o processo está julgado em definitivo, nada me impede de que, na condição de juiz, faça comentários sobre o caso.
Com o devido respeito que sempre há de se tributar às decisões do Supremo Tribunal Federal, acredito que o dispositivo é mesmo inconstitucional. E há vários argumentos científicos para isso, mas não é possível expô-los nessa singela abordagem.
Mas há um argumento que penso ser invencível. É que nenhum biólogo sério ousaria afirmar que o espermatozóide, antes de fecundar o óvulo, seja uma célula morta. Tem ele todos os atributos de uma célula viva, tanto que se move por suas próprias forças no interior da cavidade uterina. O mesmo se diga do óvulo que se desprende do ovário e desce pelas trompas. Trata-se de uma célula que ninguém negaria ser uma célula viva. Sendo assim, como alguém poderia sustentar que da fusão dessas duas células vivas se gerasse um novo ser morto? E esse ser, ao qual não se reconhece ser uma vida humana, vai se multiplicando até se transformar num homem ou numa mulher com as características que conhecemos!
Assim, penso ser insustentável qualquer argumento que negue a existência de uma vida humana no período que vai da fecundação até qualquer momento posterior. E o pior, e também mais perigoso, é considerar quando seria esse momento posterior: fixação na parede do útero, desenvolvimento das células nervosas, nascimento, dois anos de vida, cinco, dez?...
Mas, no caso da norma em questão, há algumas peculiaridades que não se pode negar. É que ela permite a pesquisa com embriões considerados como inviáveis ou congelados há mais de três anos. Assim, o argumento a favor das pesquisas está no sentido de que esses dificilmente viriam a se desenvolver, seja porque inviáveis, seja porque nenhuma mulher se dispõe a abrigá-los em seus ventres. Tanto mais se considerado o número de embriões existentes congelados em clínicas de fecundação artificial existentes.
Ainda que seja assim, não me parece ético, nem de acordo com a proteção à vida humana dispensado pela Constituição Federal, que um ser humano possa ser sacrificado em pesquisas, ainda que para se buscar salvar outras vidas.
Penso, porém, que o problema tem raízes mais profundas e que não se quer enfrentar. O dispositivo da Lei da Biossegurança em questão tem um inescondível propósito: dar uma solução ao problema dos embriões congelados, tanto que não se permite produzir embriões para pesquisa, mas tão-somente se admite que sejam utilizados para tanto os inviáveis e os congelados há mais de três anos.
Sendo assim, deveríamos, em respeito à vida humana, cuidar de proibir com rigor que, doravante, haja embriões, vale dizer, seres humanos, congelados em laboratório. E, para isso, bastaria que se fecundassem apenas os óvulos que fossem efetivamente ser utilizados. Poder-se-ia sustentar que isso seria inviável, pois a mulher haveria de passar por vários procedimentos até que se lograsse êxito etc. Ora, mas em nome da eficácia da fecundação in vitro deveríamos continuar a permitir que se produzam mais embriões que os que efetivamente se pretende implantar no útero materno? Será que a essas vidas que se mantêm congeladas está sendo assegurada a dignidade da pessoa humana, também assegurada no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal?

Nesse contexto, não vejo a decisão do Supremo como o primeiro passo de uma série de outras medidas tendentes a banalizar a vida humana, como uma espécie de primeira etapa, após a qual viriam o aborto, a eutanásia etc. Penso que se admitiu a pesquisa como forma de solução de um problema existente e inegável, ainda que não concorde com essa solução. E cabe a nós agora combatermos as raízes do problema, em defesa da vida desde a concepção até a morte natural, e em todas as suas fases, que seja vivida com a plena dignidade que lhe é assegurada em nossa Constituição Federal.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Defeitos e limitações

Na edição de 18 de maio de 2.008, o Correio Popular trouxe uma interessante reportagem sobre o aumento das cirurgias plásticas entre os adolescentes. A matéria traz a opinião do Dr. Marco Antônio de Camargo Bueno, cirurgião plástico e professor UNICAMP, que faz oportunas considerações. Aponta o especialista a causa disso: “Hoje, o físico e a beleza são muito valorizados, não importa o que você é e sim como seu físico é. Desde cedo, as crianças aprendem isso”. E depois, com coragem e inegável mostra de bom senso, explica: “O adolescente se submete a qualquer coisa para ser aceito no grupo e é ai que mora o perigo. Os riscos devem ser bem mensurados pela família antes da cirurgia, porque o grau de insatisfação do pós-operatório é bem grande”.
Por que será que os adolescentes cada vez mais buscam alterar suas características físicas, desejando amoldá-las a padrões que se propõem como ideais de beleza? É urgente que os pais e educadores em geral se empenhem em entender o problema, sobretudo porque, como expõe o especialista acima mencionado, é grande a insatisfação das pessoas após a cirurgia.
Penso que é necessário distinguir as limitações dos defeitos. Sem nenhuma preocupação científica ou rigor técnico, podemos intitular como limitações aquelas características físicas dos indivíduos sobre as quais não se detém possibilidade de escolha e controle. Por exemplo, a estatura excessivamente baixa ou uma má-formação congênita ou adquirida num acidente. Quanto aos defeitos, chamaremos alguns aspectos do caráter sobre os quais a pessoa pode exercer um controle, ainda que isso implique esforços, tal como o mau-humor habitual, o vício de mentir ou de incorrer em maledicências.
Com o avanço da ciência, muitas de nossas limitações podem ser superadas. Hoje há técnicas para controlar o crescimento, fazendo com que pessoas que geneticamente teriam uma estatura abaixo da média fiquem “dentro dos padrões aceitáveis”. Todos conhecemos a história de um famoso cantor norte-americano que obteve a proeza de mudar a cor da pele, forma do nariz, da face, enfim transfigurar-se por completo. Mas fica a pergunta: por quê? Penso que, embora seja legítimo utilizar os recursos da ciência para contornar as limitações e, com isso, obter uma melhor qualidade de vida, a postura habitual diante delas deve ser a humilde aceitação. Aliás, essa aceitação deve ser alcançada antes da cirurgia, inclusive para admitir o possível fracasso da medida.
Bem diferente há de ser, por outro lado, a nossa postura diante dos defeitos. Quanto a eles muito podemos fazer para vencê-los. Mais ainda, é na luta contra eles que nos tornaremos pessoas melhores, inclusive para sermos aceitos no grupo. Todos nós conhecemos dos bancos escolares a figura do gordinho, baixo, cheio de espinhas, que no máximo serve para jogar no gol (e ainda engole muitos frangos). Porém, pela sua simpatia, pela sua natural preocupação com os outros, sempre atento a ouvir, sempre disposto a tirar uma piada oportuna quando o ambiente está tenso, ele passa a ser aquela pessoa com quem é gostoso estar, porque diante dela se respira alegria.
Muitas pessoas acreditam que os defeitos sejam inatos e impossíveis de se vencer, e chegam a dizer, por exemplo: “eu sou desorganizado mesmo desde que nasci”. E, ao contrário, perdem-se em sonhos realmente utópicos: “ah, se eu fosse loiro!”, “se fosse mais alto!”, “se fosse mais baixo!”, “se fosse mais inteligente!” etc.

Na reportagem se diz também que muitos jovens se sentem incomodados com suas limitações porque a própria família não sabe como lidar com o assunto. Talvez aqui esteja a principal causa do problema. É que devemos amar e estimar cada pessoa, sobretudo da família, por ser quem é, com seus defeitos e suas limitações. Como diz de forma muito bela o cantor e compositor “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. E para isso não importa se seja branco, negro, amarelo, vermelho, alto, baixo, homem, mulher, velho, criança ou o que for. Importa apenas a imensa dignidade que merece cada ser humano. E nossos filhos não serão capazes de se portarem assim no mundo se não aprenderem com nosso exemplo de amor incondicional dentro de nossos lares.