segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Cobaias

Caro leitor, faz quatorze anos que me formei em direito e há nove sou juiz. Como todos sabem, em minha profissão é muito freqüente interpretar a lei de aplicá-la aos casos que tenho de decidir. Posso dizer, sem correr o risco de ser tido como soberbo, que tenho certa familiaridade com a interpretação das normas. Porém, analisando algumas leis já vigentes em nosso País, confrontadas com outras que se pretendem aprovar, confesso que não consigo entender. Por isso, humildemente admito que preciso de ajuda.
Desde março de 2005, está vigente a Lei Federal nº. 11.105/05, a chamada Lei da Biossegurança, que trata dos organismos geneticamente modificados – OGM, o que ficou mais conhecido entre a população como alimentos transgênicos. Ao que parece, essa lei colocou o ser humano dentre os “organismos” geneticamente modificáveis. É que, em seu artigo 5º, se permite a utilização de células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para fins de pesquisa e terapia. Mas será que essa norma é razoável, ou melhor, é constitucional?
Nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é, portanto, inviolável. Mas a questão que se coloca, com relação à possibilidade de utilização de embriões humanos para pesquisa, está relacionada com o início do direito à vida. Isto é, quando começa a vida humana? Há vida humana no embrião humano?
Penso que nossas leis já são claras sobre o assunto. A mesma Constituição Federal, agora nos §§ 2º e 3º do artigo 5º, consagra a validade no País dos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. E foi ratificada pelo Brasil a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de São José da Costa Rica, que, em seu artigo 4º, assegura que toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ter proteção pela lei e, em geral, desde o momento da  concepção. Portanto, a vida humana já se encontra protegida juridicamente desde a concepção, tanto que o artigo 2º do Código Civil também assegura, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Sendo assim, como é possível que seja utilizado para pesquisa um embrião humano se ele, desde a concepção, já tem assegurado o direito à vida?
Confesso ao leitor que de há muito tenho essas dúvidas e não consigo entender como que se pode harmonizar o artigo 5º da Lei da Biossegurança com a nossa Constituição Federal.
Porém, a confusão pode ficar ainda pior. Por falar em pesquisa científica, está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 215/2.007. Esse, em seu artigo 110, proíbe uso de animais para fins científicos ou didáticos, dentre outras situações: I. quando existirem métodos alternativos ou substitutivos à experimentação; e II. se o procedimento para fins de experimentação animal causar dor, estresse ou desconforto ao animal.
O projeto proíbe a utilização de animais para fins científicos quando existirem métodos alternativos. Será que os embriões humanos podem ser considerados como método alternativo a poupar os pobres animaizinhos? Será que uma droga, ainda em fase de experimentação, pode ser aplicada em animal somente se não lhe causar desconforto? Deverá ser testada diretamente em seres humanos, portanto?
Acho que estou ficando louco! Alguém pode me ajudar a entender essas leis?
O que é pior, caro leitor, é que tanto mais tento entender tudo isso, a única coisa que me vêm à cabeça é o imperador romano, Calígula, que nomeou seu cavalo favorito, Incitatus, para o Senado. Será que caminhamos para isso?

Bem, pelo menos o Incitatus não aprovaria leis desse tipo. Ou aprovaria?

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