quarta-feira, 30 de agosto de 2006

O valor da amizade

Estava dando voltas pensando no que falar com o leitor nesta semana, quando tocou a campainha. Era o Sr. João. Que bom é vê-lo! É um homem que, com mil problemas e amarguras na vida, sobe superar tudo com valentia, o que o faz agora mais fortemente alegre. E, sem querer descer do carro, vi de longe a grande fonte de sua fortaleza, a sua esposa, D. Marina. Ela é dessas mulheres fortes que os revezes da vida outra coisa não fizeram que forjar uma paz e serenidade inabaláveis. Passaram apenas para deixar umas jabuticabas para as crianças. Dessa vez a “inspiração” vem pelos fatos: falaremos da amizade, mais concretamente, dessas atitudes totalmente desinteressadas que movem as pessoas a pensar nos demais sem esperar nada em troca que não agradar, fazer um bem ao amigo.
Como é bom ter amigos! Infelizmente, porém, vivemos num mundo que não mais valoriza nem é propício para se manter a verdadeira amizade. Com efeito, em nossa triste sociedade de consumo, as relações humanas são, em grande parte,  marcadas pelo utilitarismo. Assim, pensa-se, por exemplo: “devo me aproximar mais agora de Fulano, pois acaba de ser promovido para gerente...”, ou, “Ciclano tem muitos contatos, de modo que é bom ser ‘amigo’ dele”.
Lembro-me de uma história que meu avô gostava muito de repetir. Morava ele em uma pequena cidade do interior e, certa vez, um de seus filhos contraiu tétano, temível doença naquela época. E não havia remédio que não esperar a morte da criança. Porém, a única esperança seria um medicamento a ser buscado em São Paulo. Um amigo dele, sabendo disso, insistia com o piloto e dono de um pequeno avião que havia na localidade para fazer a viagem. Esses ponderavam que o tempo não era nada adequado para o vôo e que isso seria por demais arriscado. Depois de muita insistência o piloto decolou. Foram vários percalços, mas voltaram com o remédio e, com isso, meu tio recuperou a saúde.  É impressionante notar como meu avô, anos após, manifestava uma incalculável gratidão com o amigo.
Décadas após, presenciei uma cena que me fez sentir a maravilha que é ter um amigo de verdade. Já se havia diagnosticado que minha avó contava com apenas umas horas a mais de vida. Esse amigo de meu avô foi visitá-lo. De chegada, fitaram-se uns instantes nos olhos, e o amigo deu-lhe um terno e demorado abraço. Nenhuma palavra. E nem precisava dela, o abraço dizia tudo. E ficaram ali, lado a lado. Parece que os amigos de verdade desenvolvem uma sensibilidade fina, de modo que sabem quando é hora de falar, e sabem quando, calado, muito mais se diz.
Penso que o melhor elogio que se pode imaginar para colocar sobre a efígie de um homem quando deixa essa vida seja essa: “homem de bons e muitos amigos”. Esse é, de fato, um dos melhores legados que se pode deixar. Dizem que da vida se leva a vida que se leva. A frase é sábia, pois, de fato, saber ter sólidas e frutíferas amizades constrói parte dessa ‘imortalidade’ a que tanto se almeja.
Mas a amizade precisa ser cultivada. O coração humano tem uma porta que se abre para fora. Se a tentamos abrir para dentro, quanto mais a forçamos, mais a fechamos, e, em conseqüência, mais nos isolamos. A verdadeira amizade é desinteressada. Busca-se o bem do outro por si só, sem nada esperar em troca.
A verdadeira amizade não é interesseira. Há quem busque fazer amigos para que façam parte de uma espécie de panelinha. A assim se corteja o amigo para que faça parte de um partido, para que passe a freqüentar a sua igreja, para que tome parte de uma associação, de uma entidade de ajuda mútua etc. Ocorre que a verdadeira amizade não impõe condições, ou seja, é amigo porque é, e nada mais.
É claro que a amizade, quando é verdadeira, leva a se preocupar com o amigo, a dar bons conselhos, ainda que custe. Conheço uma pessoa que tinha um amigo com quem era muito leal. E o amigo veio confidenciar-lhe que estava pensando em se separar da esposa. Após ouvir o amigo atentamente, não hesitou em dizer-lhe: “nesse assunto, você está sendo egoísta, é melhor pensar um pouco mais”. A frase pareceu dura, porém, anos após, o amigo se lembraria com gratidão do bom conselho.
Por fim, caro leitor, como estava sem inspiração para começar, também estou para encerrar, de modo que deixo isso a cargo do grande Milton Nascimento:
Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração

Assim falava a canção...

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

As virtudes de Paulinho

Hoje quero compartilhar com o leitor um fato que aconteceu com um conhecido meu, o Paulinho. Tomando um chope com amigos, uma pessoa quis fazer-lhe um elogio, então disse-lhe: “Doutor” – ele é médico – “o Senhor é uma pessoa de grandes virtudes humanas”. Com o elogio, o Paulinho ficou enfurecido. “Chamem-me do que quiserem” – pensou ele, - “mas virtudes não. Essa palavra me lembra aulas de catequese que eu ia sem gosto, Igreja Católica e outras coisas ranças”.
E mal saiu o adulador, o Paulinho comentou com os amigos: “o que esse cara está pensando? Não havia palavra pior para me elogiar! Detesto as virtudes!” Mas logo a conversa voltou para as amenidades, filosofia etc.
No dia seguinte, tocou o relógio às 7 horas e, como sempre, ficou ele na dúvida se levantaria ou não. Após poucos segundos, lembrou que o primeiro paciente do dia precisava muito dele e, sem maiores delongas, levantou-se. Chegou ao consultório, como quase sempre, alguns minutos antes da primeira consulta. Chegando a sala de seu consultório, notou que o paciente, que já o aguardava, comentou com a secretária: “Ele, como sempre, é muito pontual”. O Paulinho, que outrora ficaria contente com o elogio, pôs-se a pensar: “será que a pontualidade é uma virtude? Acho que não” – concluiu – “é só um bom hábito. Droga! Essa palavra me atormentando de novo...”.
Durante a consulta, também como sempre, era todo ouvidos. Quem conversava com ele ficava com a impressão de que não teria outra coisa a fazer. E mais, seus olhos tinham algo de pai, de irmão, de amigo. É indescritível. No fundo, ele se interessava de verdade pelo paciente. Como conseqüência, o paciente saía do consultório radiante de alegria, afinal, hoje em dia não é comum ser tratado assim. “Tudo bem, Sr. Jorge” – perguntou a secretária ao notá-lo muito mais contente que antes. “Tudo ótimo, respondeu ele. O Dr. Paulo é muito atencioso e afável. Faz-me um bem imenso vir aqui”. “É, ele é um homem de muitas virtudes mesmo”, respondeu a secretária. O Paulinho, que saía para chamar pelo próximo paciente, ao ouvir isso, pensou em partir para cima da secretária, mas se conteve, afinal, desde a juventude não se lembra de nenhuma agressão física que tivesse cometido.
Ao final do dia, o Paulinho não havia tido mais que meia hora para tomar um lanche de almoço. Foram doze massacrantes consultas, mas ele permanecia lá, tratando a todos com a mesma cordialidade. Desculpe-me, Paulinho, agora sou eu que estou inventando uma nova virtude (a cordialidade). Vamos mudar a frase: seguia ele até ao final dando muita atenção a todos, pois era de fato muito atencioso e, além disso, laborioso (droga, para consertar inventei mais duas virtudes!). Bem, seja lá o que for, mesmo depois de horas de trabalho, ele não reduzia a qualidade do atendimento. E a última paciente, após a consulta, saiu quieta, mas serena. “Tudo bem, Vera?” – perguntou a secretária. “Tudo bem, respondeu a paciente. Para ser bem sincera, eu estou envergonhada. É que tenho bem menos trabalho que o Dr. Paulo e me irrito muito facilmente, mas ele é sempre tão paciente e cortês, e olha que já deve ter tido muitos aborrecimentos hoje!”.
Às oito e meia da noite, voltou para casa. Arrebentado, começava o terceiro tempo de seu dia. Logo de entrada, encontrou com a filha. A presença dela dissipa-lhe, entretanto, qualquer dissabor e sua frase foi um vibrante: “boa noite, filhota! Como foi seu dia, meu amor?”. Ele é também muitíssimo brincalhão e o beijo e o abraço na esposa não foram menos efusivos que o da filha. E o ambiente familiar, com a sua presença, inundou-se de serenidade e alegria.
Desculpe, Paulinho, ao descrever a sua chegada em casa, apontei-lhe mais duas virtudes: a serenidade e a alegria. Mas veja, Paulinho, você pode me desculpar. É que gosto tanto da virtude da alegria, que penso que ela é o sal que dá sabor às demais, afinal, um homem que se diz virtuoso e não é alegre, na verdade não o é. Virtude triste é uma contradição nos próprios termos.

E mais, o amor que você, Paulinho, tem pela esposa, pela filha, pela Vera, pelo Sr. Jorge (aqueles pacientes, lembra?), é tão intenso, que ao exercitá-lo, faz de você uma pessoa muitíssimo virtuosa. Aceite de coração o elogio, vai! Não se irrite comigo, por favor!

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Educar nas virtudes

Muito se fala hoje em dia no meio empresarial em qualidade total, em busca da excelência em tudo o que se propõe a fazer. E o tema é tratado como questão de sobrevivência para qualquer empresa que pretenda permanecer no mercado. Penso que esse afã por melhorar continuamente que tem invadido as instituições e pessoas que as compõem são, em geral, boas, e, se bem utilizados, podem de fato contribuir para o progresso da humanidade. Mas há algo que também deveria ser alvo de grandes “investimentos” para um contínuo aprimoramento e que tem caído no esquecimento de muitos: a pessoa humana enquanto tal.
São freqüentes os cursos sobre de técnicas de vendas e de convencimento ou de aprimoramento profissional, muitos deles abarrotados de pessoas, ainda que se pague um custo elevado por isso. Por outro lado, são não poucas as iniciativas que buscam aprimorar as qualidades humanas das pessoas, cuja procura é demasiado pequena, se comparada com os benefícios que trariam, ainda que muito pouco ou nada se cobre por isso. E o motivo não é difícil de se encontrar: as pessoas acreditam e querem melhorar o mundo, mas se esquecem de que, para isso, é preciso antes melhorar a si próprias, e melhorar exatamente enquanto ser humano, nos seus atributos mais essenciais.
Pode-se conceituar a virtude como um hábito bom, como uma certa disposição interna e duradoura da pessoa para atuar bem em determinadas situações ou aspectos de sua vida. Não se tratam de atos isolados, mas de uma certa tendência, que se adquire através de um esforço reiterado em atuar de determinada maneira. Tomemos por exemplo a sinceridade. Pode ocorrer desde a infância uma certa propensão a mentir, por vários motivos (livrar-se de um apuro, encontrar uma desculpa para não fazer o que não se gosta etc), de modo que, em certas situações, é custoso dizer a verdade. Porém, se a pessoa vence uma barreira inicial e diz a verdade, ainda que isso aparentemente o prejudica, e o faz uma vez e outra, e reiteradamente pratica o ato bom, chegará um tempo em que lhe será muito custoso mentir e, ao contrário, fácil dizer a verdade em qualquer situação. Pode-se dizer, assim, que adquiriu a virtude da sinceridade.
E isso ocorre com as outras virtudes, como a generosidade. Quanto a essa, é comum a criança, até certa idade, ser um pouco egoísta, não querer compartilhar suas coisas com os demais. Assim, se ela é ajudada oportunamente, custará vencer-se num primeiro momento a emprestar um brinquedo, por exemplo. Mas na reiteração de atos em que se vencem as resistências naturais, cria-se o hábito e, com ele a virtude.
O que muitos de nós ignoramos, porém, é que há fases de nossas vidas em que se é mais fácil adquirir determinadas virtudes. Por exemplo, a obediência, que mais tarde se transforma no respeito às normas existentes numa sociedade, pode e deve ser trabalhada já na primeira infância, pois a criança está muito mais receptiva a isso que o adulto. A laboriosidade, a lealdade, o companheirismo, enfim, todas as demais têm suas idades ideais e, em geral, são muito mais fáceis de serem arraigadas na pessoa se trabalhadas desde a infância.
Para se ter uma idéia da importância de se educar a virtude na hora certa, podemos fazer uma comparação com o estudo de línguas. Um adulto que se dispõe a aprender um idioma, com esforço e dedicação, o conseguirá. Porém, levará um tempo razoável e dificilmente eliminará por completo o sotaque que terá na nova língua. À criança, ao contrário, podem ser ensinadas várias línguas, e elas as apreenderá com muito mais facilidade e não terá sotaques em nenhuma delas.
Atendo a isso, os pais e a escola têm grave obrigação de ajudar os filhos e alunos a adquirir as virtudes desde pequenos, pois, do contrário, os anos passam e tudo fica mais difícil, ainda que, nesse terreno, nunca é tarde para começar, mas também nunca é cedo para justificar nada fazer.
É importante e é urgente que pais e escola, com grande sintonia, tracem um plano inclinado para os filhos e alunos, ponderando cada virtude pode e deve ser melhor trabalhada em cada fase de suas vidas.
E o mais interessante e positivo nisso é que as virtudes nunca estão isoladas. Assim, é estimulante notar que, quando ajudamos uma criança a ser generosa, ao mesmo tempo cresce nela a responsabilidade; quando ela cresce em laboriosidade, cresce também em sinceridade.

E imaginemos como não será a nossa sociedade no futuro com um trabalho sério e perseverante com nossas crianças nesse sentido. Vale a pena – como diria o poeta – se a alma não é pequena.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Lavagem cerebral

Tem sido freqüentes, sobretudo após o lançamento do livro e do filme O Código da Vinci, reportagens negativas sobre a Igreja Católica e, em especial, de uma instituição dela que o Opus Dei.
Assistindo a um programa de auditório em que a tônica era o sensacionalismo, uma das acusações lançadas é que o Opus Dei faz em seus membros uma verdadeira “lavagem cerebral”, motivo pelo qual eles seriam tão fanáticos. Tenho de admitir que a afirmação me deixou intrigado. Há tempos que participo dos meios de formação dessa instituição, de modo que me pus a pensar: “será que esse pessoal está fazendo ‘lavagem cerebral’ comigo e nem percebi?”.
Nem foi preciso pensar muito para concluir que de fato fazem lavagem cerebral mesmo. Numa das primeiras palestras que assisti, falava-se do matrimônio. E a pessoa dizia que o homem deve se esforçar por amar cada vez mais a sua esposa, que deve se esmerar em tratá-la com delicadeza, ajudando nos afazeres da casa. E depois disse ainda que o Fundador do Opus Dei costumava dizer aos maridos: “a tua esposa é a tua porta de entrada no céu”. E explicou que com isso se queria dizer que, para o homem casado, a felicidade consiste em doar-se cada vez mais à esposa. E essa pessoa que dava essa palestra contou também que São Josemaría, depois se dirigia às mulheres e dizia o mesmo: “o teu marido é a tua porta de entrada no céu”.
Acontece que esse mesmo tema (amar cada vez mais a esposa) se repete nos meios de formação, com algumas variações, mas com a mesma mensagem de fundo. Deve ser lavagem cerebral mesmo!
Outras vezes, ouvi dizerem sobre a educação dos filhos. E diziam que eles são uma grande dádiva que Deus nos concede, mas, ao mesmo tempo, nos confia a que lhes eduquemos com responsabilidade. Dizem que assim como Deus conta conosco para dar a vida, também conta para que os formemos para que sejam um dia responsáveis e felizes. E, para que isso fique bem gravado nesse processo de ‘lavagem cerebral’, periodicamente o mesmo tema é tratado de novo, com outras palavras, mas com a mesma idéia central.
E quanto ao trabalho. Aqui eles pegam mais pesado na ‘lavagem cerebral’. Toda vez se fala que o trabalho, seja ele qual for, deve ser bem feito, bem acabado, por amor ao próximo, que dele depende, mas por amor a Deus, a quem se deve servir. E falam também que nenhum trabalho é, em si, mais ou menos digno que outros, que o que torna mais digna qualquer atividade é o amor com que se a faz. E depois repetem, repetem, até que, com o tempo, a gente passa a achar que isso é assim mesmo, ou seja, que se deve trabalhar bem, com amor, mesmo nos trabalhos que, humanamente, pareçam mais insignificantes.
E vejo agora que eles são tão perspicazes nesse processo de lavagem cerebral que, com o tempo, a pessoa vai ficando como que ludibriada, pois, a vida em família cresce muito em qualidade. Com relação aos filhos, ainda que muito se sofra, são palpáveis os progressos que se vêem de nossa dedicação a eles. E no trabalho profissional então, passa o tempo e a gente começa a achar que de fato os trabalhos mais sem importância, aqueles que ninguém vai notar, também devem ser bem feitos, e já não se consegue fazer trabalhos marretados sem que a consciência nos acuse.
Depois de algum tempo escrevendo nesta coluna, caro leitor, percebi que uma coisa é essencial em quem se aventura a escrever ao público: a lealdade, que nos faz escrever somente aquilo que se pensa, e não exatamente o que seria gostaria de ler. E com essa total franqueza é que afirmo que é essa “lavagem cerebral” que tenho notado nos meios de formação do Opus Dei nestes anos todos.
Ah! Ia me esquecendo. Tem outra coisa que eles ficam martelando sempre também: que é importante termos bons e muitos amigos; que temos de nos dedicar com zelo aos nossos amigos; que se há de ter um radical e inviolável respeito pela liberdade de cada um, sobretudo em matéria de fé e que Deus conta conosco para sermos, nos ambientes em que vivemos, semeadores de paz e alegria.

Naquele programa de auditório, foi dito também que o Opus Dei é uma instituição secreta. Quanto a isso, se eu souber de mais alguma coisa, prometo que vos contarei em breve.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

Dia dos pais


O próximo domingo é dia dos pais. Como homenagem a todos os que se aventuram a viver a fantástica aventura da paternidade nos dias de hoje, convido-os a meditar um pouco sobre a responsabilidade do empreendimento a que se lançaram.
Soube de um pai que foi indagado por um filho sobre quem teria razão no conflito no oriente médio. O pai respondeu: “Filho, eu conheço um judeu, professor universitário, extremamente competente em seu trabalho, bom pai de família, uma pessoa que só tem bondade no seu coração. Ele é meu amigo e gosto muito de falar com ele, especialmente quando ele fala de seu pai, o Babbo, como o chama carinhosamente, pois viveram na Itália e tem fortes raízes nesse país. E conheço também um libanês, de quem também me considero muito amigo. Trata-se de um grande juiz, grande fisicamente também, mas, apesar de seu porte avantajado, é de se admirar que caiba em seu peito um coração tão grande, em seus olhos puros não se vê falsidade, mas transborda uma bondade terna e sincera”. E depois concluiu o pai a sua lição: “Sabe, filho, quando vejo pessoas morrendo nessa guerra sangrenta, não consigo pensar em judeus e libaneses, mas em pessoas, seres humanos, com carne e osso e, mais que isso, com uma alma imortal destinada a viver feliz na casa do Pai, como O chama um desses meus amigos, ou na casa do Eterno, como o trata o outro”.
O filho, que já entrava na adolescência, fez ares de insatisfeito e lançou uma incisiva acusação: “Pai, você não me respondeu à pergunta”. “Você têm razão, filho, não respondi mesmo”, admitiu o pai. Mas em seguida prosseguiu a lição: “É que não tenho a resposta. São sei o que se passa na cabeça de uma pessoa em concreto que lançou uma primeira bomba, nem da outra que ordenou a retaliação, nem da outra que manda destruir pontes, edifício e gentes inocentes no afã de pegar o inimigo, não sei o que se passou na vida de cada um desses. Para ser sincero, filho, eu detesto generalizações e não sei analisar os fatos com frases do tipo ‘Israel fez isso’ e o ‘Líbano fez aquilo’, para mim, qualquer ação é sempre individual, praticada por uma pessoa, com nome, sobrenome e filiação, ainda que cada qual aja em conjunto e de acordo com outras, com quem se associa para construir ou para destruir. Por esse motivo, sinceramente não sei quem tem razão”.
O filho estava por sair ainda insatisfeito, quando o pai o chamou: “Filho, não estou fugindo da resposta, apenas estou fazendo ver que é muito triste causar divisões. O Eterno, ou o Pai, quer que vejamos a ele em cada pessoa com quem nos relacionamos em cada dia. Quer que O vejamos em cada ser humano que há sobre a face da terra, seja ele judeu, libanês, árabe, africano, cristão, islamita, ateu o que for. É que pode não concordar com nada, ou quase nada do que essa pessoa faz ou pensa, mas, quer queira quer não, todos, absolutamente todos, têm igual dignidade que você. Até o ateu, que mesmo não crendo em Deus não deixa de ser filho desse Pai em que não acredita”.
Confesso que participar dessa conversa me fez um bem imenso, mas ao mesmo tempo fica a indagação de se nos dispomos a aproveitar todos os momentos de nossas vidas para formar nossos filhos. Como são os nossos diálogos com eles? Ficam no superficial, no corriqueiro? Ou, pior ainda, limito-me a reclamar do que ele ou ela faz e que nos desagrada? Há diálogo?
Nossos filhos não precisam de que lhes falemos dos estragos de PCC e da Guerra no Líbano. Eles estão vendo isso, posto estão no mundo. Precisam, porém, e muito, que lhes digamos, com palavras, mas, sobretudo com exemplos de serenidade e alegria nos tempos em que se passam juntos, que a vida vale a pena, apesar dos pesares, que há um mundo fantasticamente belo por detrás das bombas e atentados, mas que esse mundo só pode ser visto com olhos de criança. É que as crianças, em sua visão concreta, não conseguem enxergar instituições, países, raças, nada disso, mas apenas pessoas, e essas, de carne e osso como elas, que, também como elas, mantêm um irreprimível anseio de felicidade, ainda que insistam em procurá-la por caminhos onde não a poderão encontrar.

A todos, um feliz dia dos pais!

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guerras


A imagem de crianças mortas após o massacre do exército israelense na vila de Qana, no sul do Líbano, é estarrecedora. Misturado com a indignação, ressoa em nossas mentes a persistente dúvida: por que? Por que tanto ódio? Por que tanta intolerância?
Analisando um pouco mais a questão, vemos que se aponta como causa do conflito o fato de o Hezbollah ter capturado dois soldados israelenses e matado oito. Mas isso justifica que já se tenha matado mais de 700 libaneses no conflito? Por outro lado, é justo que se tenha tirado a vida também de dezenas de israelenses?
Não pretendo, nessa breve reflexão, embrenhar-me nas razões políticas ou sociológicas que se apontam para o conflito, e nem saberia fazê-lo adequadamente. Mas aberrações como essas podem nos convidar a pensar sobre como nos portamos no nosso dia-a-dia e se, com isso, somos construtores da paz ou se também semeamos discórdia, divisões, maledicências, ódio. É que em corações podres e em almas cegas pelo ódio é que se forjam brutalidades como essas. E, como não podemos fazer nada, ou quase nada, para curar as doenças da alma de semelhantes que se destroem do outro lado do planeta, podemos olhar para dentro de cada um de nós e nos questionarmos se, em nosso ambiente, somos também plantadores de guerra ou semeadores de paz e de alegria.
Como é a nossa reação ante uma ofensa que recebemos, ainda que injusta? O que desejamos para aquele parente ou colega de trabalho que um dia nos soltou uma frase que nos desagradou? Há um sério propósito de relevar, de tirar importância, enfim, de perdoar sinceramente? Ou, ao contrário, não disparamos mísseis de longo alcance contra ele e todos os que pensam como ele somente porque não dispomos de todos esses recursos bélicos?
Quem são para nós, aqueles com quem convivemos: vizinhos, parentes, colegas de trabalho, familiares? Pessoas que nos podem ser úteis para atingirmos os objetivos de vida egoístas que nos traçamos? Degraus em que devemos pisar para chegar ao cume, antes e melhor? Ou, ao contrário, seres humanos, semelhantes a nós, que também trazem no peito um desejo inescondível de felicidade, a cujos projetos podemos em muito contribuir, por vezes, com um simples sorriso, com um olhar, com um ouvir atento a alguma lamentação.
Que me perdoe o leitor se traio as expectativas por não falar quase nada da guerra no Líbano, ao contrário do que sugere o título e a introdução. Mas estou fortemente convencido de que justiça, paz, solidariedade, segurança, constituem bens que podem ser alcançados em determinada sociedade, conquanto que antes se os edifiquem no coração dos homens e mulheres que compõem aquela sociedade.
Da nossa parte, no local em que vivemos, o pouco, que é muito, que podemos fazer é nos transformarmos em soldados da paz. Daqueles que não vivem de mexericos e maledicências, que roubam a harmonia na família, no local de trabalho, nos círculos de amizades. Daqueles que não são dados a piadinhas maldosas, sempre pelas costas, e, por outro lado, covardes em dizer a um amigo, com delicadeza, com tato, mas lealmente, olho no olho, algum ponto em que o comportamento dele não é adequado e precisa ser melhorado.
A paz que tanto se almeja é fruto do amor, do amor sinceramente vivido e que brota de um coração puro, sem maldade. Por ser oportuno, deixo que um judeu, que viveu há cerca de vinte séculos, nos ensine como se deve viver para se ter a tão sonhada paz:
Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine. E anda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montanhas, se não tivesse caridade, não seria nada. E, ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, nada me aproveitaria.

A caridade é paciente, é bondosa; a caridade não é invejosa, não é arrogante, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (1 Cor, 13).