Inicia-se hoje, quarta-feira de cinzas, o tempo da
quaresma. O Papa Bento XVI, no domingo passado, durante a tradicional reza do
ângelus, lembrou a todos fiéis que esse tempo constitui “um grande memorial da
paixão do Senhor, em preparação para a Páscoa da Ressurreição”. O Santo Padre
lembrou também que a quaresma “não deve ser vivida como uma tarefa pesada e
incômoda”, mas com “o espírito novo de quem encontrou em Jesus o sentido da
vida”.
Em não raras vezes, nós, brasileiros, nos gabamos de dizer
que o Brasil é a maior nação cristã do mundo. Porém, fazendo eco das palavras
do Papa, penso que devemos nos questionar acerca de que tipo de cristianismo
que estamos vivendo. O próprio Cristo, dentre os muitos ensinamentos que nos
legou, deixou a condição para ser seu discípulo: “Se alguém quiser me seguir,
renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34).
A mensagem do Evangelho é tão clara que não há margem
para interpretações que a anulem. Tomar a cruz de cada dia é, pois, condição
essencial para seguir o Mestre. Assim, não se pode dizer que é cristão quem não
esteja disposto a renunciar o afã de uma vida cômoda, aburguesada, para aceitar
por amor as contrariedades que marcam o dia-a-dia.
Mas, diante do preceito, poderíamos nos perguntar:
quais são as cruzes que devemos abraçar em pleno século XXI?
A resposta a essa indagação não é substancialmente
diferente da que daria um cristão dos primeiros tempos do cristianismo. Ou
seja, a cruz de cada dia que devemos abraçar são as contrariedades que marcam
nosso cotidiano, seja ele qual for.
Será, por exemplo, o esforço por atender com
cordialidade aos que nos procuram durante o nosso trabalho, ainda que as
interrupções constantes atrapalhem a execução das tarefas que nos cabem. As contrariedades consistirão em aceitar os
defeitos do colega de trabalho, do marido, da esposa, sabendo que todos também
temos muitos e talvez, com os nossos também incomodamos os demais.
Certa vez, um amigo meu pretendia fazer uma grande
penitência na quaresma que agora não me recordo bem, mas acredito que fosse não
comer carne durante todo esse período, e resolveu consultar o seu diretor
espiritual acerca da conveniência disso. Esse respondeu ao meu amigo
prontamente: “olha, acredito que seja um pouco exagerado não comer carne na
quaresma inteira, pior, a penitência vai ser mais de sua esposa que sua, pois
ela vai ter de ficar pensando o tempo todo no que pode e não pode fazer nas
refeições”. Em seguida, aconselhou-o: “Por que você não se esforça por atender
sempre com um sorriso às pessoas que atende em sua repartição? Ou, melhor
ainda, faça o propósito de não brigar com a esposa nem falar com os filhos em
tom de reclamação durante essa quaresma”.
E, falando em defeitos das pessoas com quem
convivemos, uma boa cruz é corrigi-las, com respeito, no momento oportuno, mas
com o propósito de ajudá-la a melhorar. Acontece que nós, muitas vezes,
comentamos com terceiros acerca de um hábito negativo de um amigo, parente ou
cônjuge, e, no entanto, somos covardes e sem coragem de dizer ao próprio
interessado, e apenas a ele, o seu defeito para que possa melhorar.
As cruzes poderão vir, por vezes, de acontecimentos
desagradáveis, mas que, no momento, não há nada que fazer. Será um carro que
quebra, uma chuva que nos apanha no meio da rua, um revés econômico com que não
contávamos, enfim, por diversos modos. E, diante disso, podemos assumir duas
posturas antagônicas: esbravejar, reclamar, deixar-se dominar pelo mau humor;
ou, como bom cristão, aceitar como oportunidade para crescer nas virtudes da
paciência, da sobriedade, da humildade, do respeito.
Agora para concluir, gostaria de contar o fim da
tragédia do meu amigo que queria ficar a quaresma toda sem comer carne. Depois
de uma semana tentando cumprir a indicação que o sacerdote lhe deu, voltou ele com
cara de derrotado: “Padre, não dá para trocar a penitência? Eu havia pensado em
ficar os quarenta dias apenas comendo chuchu nas refeições e jaca de sobremesa,
pois acho que isso eu conseguirei cumprir”.
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